Revista Brasileira de Enfermagem
Print version ISSN 0034-7167
Rev. bras. enferm. vol.61 no.1 Brasília Jan./Feb. 2008
doi: 10.1590/S0034-71672008000100018 REFLEXÃO
Refletir acerca do cuidado na perspectiva da tecnologia nos leva a repensar a inerente capacidade do ser humano em buscar inovações capazes de transformar seu cotidiano, visando uma melhor qualidade de vida e satisfação pessoal.
Para podermos entender o contexto atual que reflete a arte do cuidado inserida num mundo tecnológico, é necessário compreender o desenvolvimento histórico e cultural da sociedade.
A primeira revolução técnico-científica pode ser situada entre o final do século XVIII e o início do século XIX, cujas transformações tiveram mérito de substituir na produção, a força física do homem pela energia das máquinas, primeiramente pelo vapor e após, pela eletricidade. A tecnologia passa a ser compreendida como o estudo ou a atividade da utilização de teorias, métodos e processos científicos, para solução de problemas técnicos (1).
No campo da saúde a introdução de instrumentos para o ato cirúrgico e o surgimento de equipamentos diagnósticos foram os movimentos mais evidentes da tecnologização da terapêutica. A Revolução Industrial e a Segunda Guerra Mundial proporcionaram a união da ciência à tecnologia, adequando-a aos princípios científicos, passando a utilização dos equipamentos mais simples aos sofisticados(1).
No Brasil, no final da década de 60 a investigação sistematizada em busca de um corpo de conhecimentos específicos de Enfermagem e também a construção de modelos conceituais para a sua prática começaram a tomar destaque. A construção do conhecimento da Enfermagem teve suas primeiras tentativas quando surgiu a sistematização das técnicas e, mais tarde, com a preocupação em organizar princípios científicos para nortear a sua prática(2).
Com o advento da fundamentação científica do cuidado de enfermagem houve o reconhecimento da expressão tecnológica do cuidado, tanto como processo como produto. Assim, percebemos que na história da civilização a tecnologia e o cuidado estão fortemente relacionados.
O CUIDADO DE ENFERMAGEM
A história demonstra que o cuidar sempre esteve presente nas diferentes dimensões do processo de viver, adoecer e morrer, mesmo antes do surgimento das profissões(3). O conceito de cuidar é extremamente discutido e varia conforme o autor, isto se dá devido às diversas formas de se olhar o cuidador, o ser cuidado e o entorno.
O cuidar, realizado pela Enfermagem, pode ser entendido como um processo que envolve e desenvolve ações, atitudes e comportamentos que se fundamentam no conhecimento científico, técnico, pessoal, cultural, social, econômico, político e psico-espiritual, buscando a promoção, manutenção e ou recuperação da saúde, dignidade e totalidade humana(4).
O cuidado de enfermagem consiste na essência da profissão e pertence a duas esferas distintas: uma objetiva, que se refere ao desenvolvimento de técnicas e procedimentos, e uma subjetiva, que se baseia em sensibilidade, criatividade e intuição(5).
Através destes conceitos podemos perceber a complexidade do cuidado e que o cuidado somente se estabelece quando há a utilização das duas esferas concomitantemente e a utilização adequada da tecnologia. A tecnologia, portanto, pode ser compreendida como um mediadora da racionalidade e da subjetividade, da intuição, da emoção e das sensações, fazendo da razão e da sensibilidade instrumentos para fortalecer e qualificar o cuidado de Enfermagem(6).
Quando colocamos a relação entre a tecnologia e o cuidado, podemos pensar que a tecnologia consiste em conhecimentos e instrumentos interligados que fundamentam e delimitam modos sistematizados de saber-fazer o cuidar humano(10). Sendo que, a implementação do cuidado requer a incorporação de processos e produtos e expressões tecnológicas do conhecimento.
A TECNOLOGIA NO CUIDADO
Assim como o conceito de cuidado, existem várias acepções de tecnologia. O termo tecnologia possui como definição etimológica "tecno" que vem de techné, que é o saber fazer, e "logia" que vem de logos razão, ou seja, significa a razão do saber fazer(8).
A tecnologia pode ser classificada de acordo com seu conteúdo, natureza ou emprego. Portanto, pode ser incorporada a mercadorias (tecnologia de produto) e/ou fazer parte de um processo (tecnologia de processo)(9).
Assim, é um processo que envolve diferentes dimensões, do qual resulta um produto, que pode ser um bem durável, uma teoria, um novo modo de fazer algo, em bens ou produtos simbólicos. Desse modo, tecnologia envolve saberes e habilidades e precisa ser distinguida de equipamento ou aparelho tecnológico, o qual se configura como expressão de uma tecnologia, resultante desses saberes que possibilitaram esse produto, convertido, então em equipamento(10).
As tecnologias podem ser classificadas em leve quando falamos de relações, acolhimento, gestão de serviços; em leve-dura quando nos referimos aos saberes bem estruturados, como o processo de enfermagem; e dura quando envolvem os equipamentos tecnológicos do tipo máquinas, as normas(11).
Nessa compreensão, a tecnologia não poder ser vista apenas como algo concreto, como um produto palpável, mas como resultado de um trabalho que envolve um conjunto de ações abstratas ou concretas que apresentam uma finalidade, nesse caso, o cuidado em saúde. A tecnologia, portanto, permeia o processo de trabalho em saúde, contribuindo na construção do saber (e em sua própria expressão); ela se apresenta desde o momento da idéia inicial, da elaboração e da implementação do conhecimento, como também, é resultado dessa mesma construção. Ou seja, ela é ao mesmo tempo processo e produto. Além disso, a tecnologia também aparece na forma como se estabelecem as relações entre os agentes, no modo como se dá o cuidado em saúde, compreendido como um trabalho vivo em ato.
O CONHECIMENTO DE ENFERMAGEM: IMPLICAÇÕES DO CUIDADO E DA TECNOLOGIA
O cuidado de Enfermagem e a tecnologia estão interligados, uma vez que a enfermagem está comprometida com princípios, leis e teorias, e a tecnologia consiste na expressão desse conhecimento científico, e em sua própria transformação.
Os conhecimentos de Enfermagem elaborados e/ou aprimorados foram classificados e estruturados segundo seu grau de abstração. A estrutura do conhecimento pode ser definida em metaparadigma, filosofia, modelos conceituais, teorias e indicadores empíricos(12).
A estrutura do conhecimento para alguns autores pode se diferenciar da acima apresentada na ordem do conhecimento entre teorias e modelos conceituais, e apresenta um componente até então não citado que são os modelos(13).
Modelo é uma representação esquemática de certos aspectos da realidade, enquanto que as teorias são modelos de certos fenômenos. São especialmente úteis no desenvolvimento teórico, já que ajudam a selecionar os conceitos relevantes necessários para representar um fenômeno de interesse e a determinar as relações entre os conceitos. Ainda, também permitem manipular os conceitos no papel antes de confrontá-los com a realidade. Além disso, auxiliam as enfermeiras no sentido de que eles oferecem uma explicação observável dos elementos que integram uma teoria. Assim, todas as teorias são modelos, nem todos os modelos são teorias(14).
A elaboração e a aplicação de um modelo de cuidado é uma forma de tecnologia, pois é uma forma de ação, um modo de fazer o cuidado. Então, podemos associar o modelo de cuidado como um processo tecnológico, e poderia ser classificado, como uma tecnologia leve-dura, pois o mesmo é estruturado em uma série de "passos ou normas" que o definem ou o orientam para a realização do cuidado.
Porém, um modelo não pode ser visto como algo estanque, e sim como um norteador para as ações do cuidador. Quando visualizamos tal estrutura de forma flexível que sofre adaptações conforme a necessidade de ambos, cuidador e ser cuidado, com o objetivo de promover um cuidado único, específico e ao mesmo tempo com a visão do todo, o modelo de cuidado pode então ser visto como uma tecnologia leve. Ou seja, a aplicação e implementação de um modelo de cuidado pode ser, ao mesmo tempo, uma tecnologia leve- dura e leve.
Desse modo, os modelos de cuidados mostram-se como tecnologias, que podem produzir novas tecnologias, sejam estas leves, leve-duras ou duras, que englobam um conjunto de conhecimentos para qualificar e aprimorar a práxis da Enfermagem.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Percebemos, portanto, que ao nos reportarmos ao cuidado de enfermagem e a tecnologia, precisamos primeiro nos questionar qual a finalidade do cuidado de enfermagem, para então, compreendermos que tipo de tecnologias estamos nos referindo. Pois é o cuidado que indica quais tecnologias são necessárias em uma determinada situação, ou seja, para prestar um cuidado eficiente e eficaz, necessitamos de diferentes tipos de tecnologia: de uma tecnologia dura, quando utilizamos instrumentos e equipamentos, de uma tecnologia leve-dura, quando lançamos mão de conhecimentos estruturados (teorias ou modelos de cuidado) e de tecnologias leves, já que a implementação do cuidado requer o estabelecimento de relações (vínculo e acolhimento).
As inovações tecnológicas favorecem o aprimoramento do cuidado, porém não podemos esquecer que é o cuidado que utiliza a tecnologia, e quando há tal compreensão apontamos em direção a um cuidado de enfermagem mais eficiente, eficaz e convergente aos requerimentos do ser cuidado.
Assim, o cuidado e a tecnologia possuem aproximações que fazem com que o cuidado de enfermagem, resultante do um trabalho vivo em ato, sistematizado e organizado cientificamente, favoreça a manutenção da vida, proporcione conforto e bem estar e contribua com uma vida saudável ou uma morte tranqüila.
REFERÊNCIAS
1. Nietsche EA, Dias LPM, Leopardi MT. Tecnologias em Enfermagem: um saber prático? In: Anais do Seminário Nacional de Pesquisa em Enfermagem; 1999 maio; Gramado (RS), Brasil. Gramado (RS): ABEn-RS; 1999. [ Links ]
2. Paim L. Conceitos e visões teóricas. Florianópolis (SC): Repensul/ Espensul; 1998. [ Links ]
3. Neves EP. As Dimensões do cuidar em enfermagem: concepções teórico-filosóficas. Escola Anna Nery Rev Enferm 2002 dez; 6(1): 79-92. [ Links ]
4. Maia AR, Erdmann AL, Carraro TE, Radunz V. Princípios do Cuidar. In: O Processo de Cuidar, Ensinar e Aprender o Fenômeno das Drogas: A redução das demanda. Módulo 04. Curso de Especialização no Fenômeno das Drogas. Florianópolis (SC): UFSC - Departamento de Enfermagem; 2003. [ Links ]
5. Souza ML, Sartor VVB, Padilha MICS, Prado, ML. O Cuidado em Enfermagem: uma Aproximação Teórica. Texto Contexto Enferm 2005; 14(2): 266-70. [ Links ]
6. Prado ML, Carraro TE, Rocha PK, Wall M, Gasperi, P, Radunz V. Tecnologia e Cuidado: onde está o humano nessa convergência? In: Anais do III Seminário Internacional de Filosofia e Saúde. 2006 out 8-10; Florianópolis (SC), Brasil. Florianópolis (SC): Programa de Pós Graduação de Enfermagem da UFSC; 2006. p. 743-45. [ Links ]
7. Barbosa SF, Paim L, Prado ML, Martins CR. Desenvolvimento de tecnologias para o cuidado: tendências e perspectivas. In: Anais do12º Seminário Nacional de Pesquisa em Enfermagem; 2003 abr 27-30; Porto Seguro (BA), Brasil. Porto Seguro (BA): ABEn-BA; 2003. [ Links ]
8. Rodrigues AMM. Por uma Filosofia da Tecnologia. In: Grinspun MPSZ, organizador. Educação Tecnológica: desafios e perspectivas. 2ª ed. São Paulo (SP): Cortez; 2001. [ Links ]
9. Correa MB. Tecnologia In: Cattani AD, organizador. Trabalho e Tecnologia: dicionário crítico. 2ª ed. Petrópolis (RJ): Vozes; 1999. p. 251-57. [ Links ]
10. Prado ML, Martins CR. Técnica, tecnologia e o cuidado de enfermagem: em busca de uma nova poética no trabalho de enfermagem. In: Prado ML, Gelbcke, FL, organizadores. Fundamentos de Enfermagem. Florianópolis (SC): Cidade Futura; 2002. p. 19-22. [ Links ]
11. Merhy EE. Em busca de ferramentas analisadoras das Tecnologias em Saúde: a informação e o dia a dia de um serviço, interrogando e gerindo trabalho em saúde. In: Merhy EE, Onoko, R, organizadores. Agir em Saúde: um desafio para o público. 2ª ed. São Paulo (SP): Hucitec; 2002. p. 113 - 150. [ Links ]
12. Fawcett, J. Knowledge contemporary nursing knowledge: analysis and evolution of nursing models and theories. 2ª ed. Philadelphia (PA): F. A. Davis Company; 2005. p. 3-28. [ Links ]
13. Tomey AM. Introducción al análisis de las teorías de enfermería. In: Tomey, AM, Alligood MR, organizadores. Modelos y teorías en enfermería. 4ª ed. Madrid (ESP): Ed. Harcourt; 2000. p. p. 3-15. [ Links ]
14. Keck JF. Terminología del desarrollo de la teoría. In: Tomey AM, Alligood MR, organizadores. Modelos y teorías en enfermería. 4ª ed. Madrid (ESP): Ed: Harcourt; 2000. p. 16-24. [ Links ]
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